O líquido encarnado escorria-lhe pelas mãos. Finos ribeiros sanguíneos corriam entre os ossos do pulso, faziam o seu caminho por entre os pelos do antebraço e pingavam do cotovelo flectido. Pingo a pingo, caíam estrondosamente na poça vermelha que se espalhava pelo chão de mármore branco.
“O que é que tu fizeste?” Perguntava a sua própria consciência, ainda anestesiada pela descrença no sucedido. Sobre a mesa da sala, numa pose de boneco de peluche abandonado, jazia o corpo de uma mulher. O sangue ainda quente brotava de golpes profundos no peito e no pescoço. Golpes de ódio, golpes de amor.
Lentamente, com a suavidade de quem acorda de um sonho, começou a compreender o sucedido e a abarcar toda a plenitude das suas acções. Matara-a. Farto de aturar as suas mentiras, farto de aturar as suas traições e as suas críticas, deixara a loucura finalmente tomar conta das suas acções. Matara-a como quem destrói um obstáculo, como quem extermina uma barata que espreita por baixo dos armários da cozinha. Golpes de ódio, golpes de amor.
Levou as mãos à cara. Tapou a face como uma criança que se esconde de um mundo que a assusta. Quando afastou as mãos, olhou-as, notando finalmente o sangue que as cobria. O sangue dela. O sangue que agora secava na sua face numa máscara de guerreiro primitivo. Deixara o ódio controlar as suas acções mas era agora o amor que voltava a preencher as suas artérias. Olhou para as mãos ensanguentadas em descrença. O seu olhar saltou entre o corpo morto da única mulher que alguma vez amara e a faca incriminadora que flutuava agora num mar de sangue. “O que é que eu fiz?”
Lágrimas brotaram dos seus olhos. Sentimentos confusos. Um alívio orgástico misturava-se com uma angústia insuportável e uma dor que começava a crescer num buraco negro profundamente escondido sob o seu externo. Uma por uma as lágrimas correram pela sua face. Lágrimas que adquiriam uma tonalidade rosa à medida que o líquido salgado lacrimal diluía o sangue que secava na cara atroz do assassino.
Ajoelhou-se lentamente e tocou, com a ponta dos dedos, o véu encarnado que cobria o mármore alvo. Levou os dedos à boca como que a tentar confirmar com o gosto o que todos os outros sentidos já sabiam. Descrente, incapaz de abarcar na sua mente as implicações das suas acções, pegou na arma do crime e olhou-a longamente. Apreciou os reflexos metálicos que surgiam por entre as manchas de sangue e sentiu o frio do metal na sua pele. Pegou com firmeza o cabo de madeira e pensou no que seria sentir aquela lâmina a penetrar na pele, a enterrar-se profundamente nos tecidos moles e a perfurar órgãos, veias e artérias. Morte. A monstruosidade da sua acção começou a interiorizar-se. Apercebeu-se que nunca mais a veria rir, que nunca mais ouviria a sua voz, que nunca mais se alegraria com um sorriso dela…
Por instantes desejou a morte, desejou que tudo acabasse depressa e que a escuridão eterna o envolvesse para que a sua existência terminasse ali, naquele momento. Odiou-se. Decidiu que a morte seria demasiado doce, muito melhor do que aquilo que ele merecia. Desejou ser castigado, punido exemplarmente por um acto indescritível. Atirou a faca ensanguentada com violência contra uma parede. Ouviu o metal retinir de forma estridente no chão frio e viu pequenos coágulos de sangue saltarem da lâmina e salpicaram o chão de culpa. Saiu pela porta fora, coberto de sangue dos pés à cabeça, e caminhou pela rua indiferente aos olhares horrorizados dos transeuntes. Não olhou uma única vez para o caminho que tomava, deixando-se simplesmente arrastar pela torrente dos seus sentimentos. Entrou na esquadra da polícia e caiu no chão, primeiro sobre os joelhos, deixando-se depois enrolar como um feto no útero materno. As lágrimas rolaram, rios de horrores atravessaram o espaço vazio do seu olhar. Desde esse dia nunca mais ninguém o ouviu falar, nem uma palavra, nem sequer um som. Matou o seu amor, mas morreu com ele, a sua vida acabara naquele momento.
Pedro M. Lourenço in "À sombra de uma estrela intermitente"