Pedro M. Lourenço
Deus não joga aos dados

"click"
O barril vazio da pistola agoirenta adiou por momentos o inevitável resultado daquele jogo de roleta russa. Deus, impávido e sereno, passou a arma ao diabo e disse: "Vá mafarrico, agora é a tua vez".
O diabo pegou no revólver, afagou-o luxuriosamente, agraciado com a subtil perfeição daquela sua criação, e perguntou: "De certeza que este jogo não está viciado?".
"click"
Sem que o mais ínfimo tremor fizesse suspeitar qualquer ponta de dúvida no seu ser, passou a arma a deus e disse: "Vamos, despacha-te, quero resolver isto depressa"
Deus pegou na arma, apontou-a à sua têmpora e disse antes de disparar: "Mas o jogo que jogamos nestes últimos milhões de anos foi tão divertido."
"click"
Com aquele ar benevolente e paternalista que sabia tanto irritar o diabo, passou-lhe novamente a arma e disse: "Tu sabes que era desnecessário este desempate, sabes bem que fui eu quem ganhou."
O diabo, antes de encaixar a arma sob o maxilar inferior, respondeu: "Ganhaste? Mas foste quem inventou as regras e mesmo assim não conseguiste mais pontos que eu."
"click"
Passou a arma a deus, comentando com alguma confiança na vitória: "Não sabes que todos os diabos têm sorte?"
Deus voltou a apontar-se a arma, dizendo: "Mesmo com toda essa sorte não conseguiste lixar a vida a mais humanos do que eu!"
"click"
Um breve relance de um sorriso clareou a face de deus enquanto passou ao diabo a arma que o mataria. Disse: "Vá, mata-te lá. Eu ganhei" O diabo, perfeitamente indiferente ao seu destino, disse antes de disparar: "Sacana! Não acredito que vou perder por aquele detalhe técnico de lixares a vida ao teu próprio filho ter-te valido pontos extra."
"Bang"
O cadáver do príncipe das trevas tombou aos pés de deus, que abriu um sorriso e disse: "Idiota! Não sabias que deus não joga aos dados?" Pegou na arma vazia que antes escondera sob o seu manto de luz e saiu da sala a rir.
Pedro M. Lourenço in "À sombra de uma estrela intermitente"