Pedro M. Lourenço
O guarda do rio

Sei de um rio, ali para os lados da minha terra, que corre azul até ao mar e nele salga as suas águas com satisfação. Tal como tantos outros rios, ele nasce jovem e irrequieto no alto de uma grande serra. Depois, alimentado pelas chuvas e pela neve, cresce apressado entre cascatas e vales até se espraiar num vasto leito que corre planície abaixo até ao estuário lamacento onde se despede de nós.
Um rio tão grande e imponente é a casa de inúmeras plantas e animais. Ele são verdes algas e nenúfares, imponentes salgueiros e freixos, pequenos mexilhões e camarões, e reluzentes enguias e carpas. Tanta vida e tanto rio precisam de um guarda e esse guarda é nem mais nem menos que o Alfredo. O Alfredo é um guarda-rios e percorre o rio, qual raio azul e laranja, sempre alerta para qualquer problema.
Numa calma e ensolarada tarde de Primavera, o Alfredo debicava satisfeito um lanche de camarão. Estava empoleirado num ramo alto de onde podia ver um longo troço do rio e por isso depressa percebeu que ia ter uma visita quando avistou ao longe uma náiade. As náiades são os espíritos dos rios e não é fácil descreve-las a quem nunca viu uma. Imagina uma figura formada por água em movimento, que tão depressa faz lembrar uma jovem mulher como uma carpa ou uma lontra, e cujos movimentos fluídos dançam com a graça de uma cascata.
Mas a náiade vinha com pressa. Hoje parecia antes uma temível enxurrada daquelas que por vezes se formam quando as chuvas engrossam o caudal do rio. Mal o avistou, a náiade começou a gritar: “Alfredo, Alfredo. Vem rápido. Temos uma emergência.” Alfredo levou a sério a urgência da náiade, mas fez questão de acabar o seu lanche antes de voar na sua direcção e responder: “O que se passa Soraia? O que aconteceu?”
Então Soraia contou-lhe o que vira nessa manhã. Alguns quilómetros rio acima, ela e as outras náiades encontraram peixes mortos a flutuar nas águas. Primeiro viram um, depois dois, quatro, muitos. Preocupadas seguiram o rasto de morte até uma pequena enseada numa curva do rio onde as águas estavam cobertas de peixes mortos. Ao ouvir este relato Alfredo nem hesitou, disparou como uma seta para ver aquela tragédia com os seus próprios olhos.
Quando chegou ao local indicado por Soraia, Alfredo teve de se esforçar para conter as lágrimas. Centenas de peixes flutuavam mortos nas águas e, sob as águas, também os mexilhões, girinos e camarões tinham morrido. A água naquela zona estava castanha como um esgoto e cheirava a ovos podres. Alfredo percebeu que ia precisar de ajuda e de imediato foi chamar duas lontras suas amigas, as gémeas Lutra e Lutra. As lontras foram pela margem, enquanto Alfredo começou a voar em círculos cada vez mais alto tentando descobrir o que estaria a matar o seu rio.
Foi Lutra a primeira a descobrir o problema e logo chamou Alfredo e a sua irmã gémea para verem o que tinha encontrado. Escondido entre uns arbustos, um cano despejava no rio uma água que de tão escura antes parecia leite com chocolate. O cheiro não enganava ninguém, aquilo era poluição e era certamente o que estava a matar os animais do rio. Alfredo de imediato tomou conta da situação: “Lutra, tu vais seguir o cano para perceber de onde vem este nojo. A tua irmã vai avisar todos os animais do rio que esta zona é perigosa e que ninguém se deverá aproximar. Entretanto, eu vou voar sobre as copas das árvores em busca de explicações”.
Tanto Lutra como Alfredo depressa encontraram a origem da poluição. O cano começava numa fábrica de um empresário ganancioso que preferia destruir o rio a gastar algum dinheiro a limpar as águas sujas que dali saíam. Se havia homens envolvidos, Alfredo sabia exactamente com quem falar. Voou até uma pequena aldeia ribeirinha, não muito longe dali, onde vivia um velho pescador chamado Elias. Elias era uma dessas raras pessoas capazes de falar com os animais e amigo de longa data de Alfredo.
Alfredo foi encontrar Elias junto ao seu barco, no seu eterno labor de remendar as redes com que ia à pesca. Começou logo a piar ao ouvido de Elias, que apesar de já um pouco surdo com a idade depressa percebeu o que ouvia. Mas a resposta de Elias não foi a que Alfredo esperava: “Meu velho amigo, desta vez não te posso ajudar. Essa é a fábrica em que trabalha o meu filho e ele precisa muito desse trabalho. Eu sei que eles não cuidam do rio como deviam, mas o meu filho diz que é preciso fazer alguns sacrifícios em nome do progresso.”
Alfredo nem queria acreditar no que ouvia. O seu velho amigo estaria disposto a perder o rio que fora o centro da sua vida ao longo de tantos e tantos anos? Mas Elias não percebia que a poluição não iria ficar só naquela curva do rio, que se iria espalhar rio abaixo e chegaria também ali à aldeia? Onde iria então Elias pescar? E onde iriam as pessoas buscar água para beber? Desesperado, Alfredo explicou tudo isto a Elias que ficou muito calado a olhar longamente as águas do seu rio.
Depois de passarem alguns segundos, que pareceram horas, Elias olhou a pequena ave que esvoaçava em seu redor e sorriu. “Meu amigo Alfredo, mais uma vez vieste mostrar-me que é na Natureza que está a sabedoria. Como pude ser tão cego. De que vale o tal progresso se temos de o pagar com o peixe que comemos e a água que bebemos?” Elias percebeu que estava em causa a sobrevivência de todo o rio e também da sua aldeia.
A partir desse dia Elias não parou. Falou com as outras pessoas da aldeia e fê-las compreender que o seu modo de vida estava em risco. Falou também com o seu filho, que talvez por ter estudado depressa percebeu aquilo que o dono da fábrica nunca percebera: que não existe lucro em destruir aquilo que é de todos. Não foi uma batalha fácil, mas Elias e o seu filho conseguiram convencer o dono da fábrica a comprar filtros e maquinaria capazes de limpar as águas que saíam da fábrica.
Em poucas semanas o rio voltou a correr azul como antes. A força da corrente arrastou toda a poluição para longe e os peixes, os mexilhões e os camarões voltaram a poder viver na curva do rio junto à fábrica. Alfredo estava feliz pois tinha mais uma vez cumprido a sua missão de guarda do rio, e não o alegrava menos a boga que Elias lhe tinha oferecido para o almoço. Afinal, que mais poderia um guarda-rios querer da vida?
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