Pedro M. Lourenço
Criaturas anfíbias

Foi talvez capricho do destino ter feito daquela terra mar. Sim, porque ninguém me convencerá que a infatigável acção humana que ergueu a Holanda de sob as águas não foi um justo devolver aos ares daquilo que o oceano lhes tinha roubado. O primeiro homem que se lembrou de recorrer a diques e moinhos para reclamar território ao reino de Neptuno não mais fez que responder ao apelo imaterial de um solo e de uma nação cujo destino tinha sido surripiado pela súbita subida das águas após a Idade do Gelo.
Mas não foram poucos os séculos que se passaram desde a subida do mar até à chegada dos engenheiros. Algo da essência dos mares se imiscuiu naquela terra. Foi assim que uma província de agricultores se converteu num império de navegadores. Foi também assim que quem tantos diques construiu decidiu preencher a terra de canais. Esta ambivalência é ainda notória nos nossos dias, por exemplo nas bicicletas que frequentemente acabam no fundo dos canais, abandonando a sua existência de biciclo de transporte terrestre para se adornarem de ares de monstro marinho à espreita de presas insuspeitas.
Estas criaturas anfíbias já me saltaram várias vezes ao caminho nas minhas deambulações pelos Países Baixos. Umas deixaram-me consternado, outras surpreendido. Uma ou outra deixou-se mesmo fotografar, antes que recuar para a escuridão das águas turvas. Houve até uma que se deixou domesticar. A custo de muita tinta e de agentes anti-ferrugem, devolvi-a ao seu ofício de origem, tendo-me servido como meio de transporte durante muitos meses. Contudo, veio a desaparecer um dia. Talvez roubada, talvez simplesmente regressada ao canal de onde tinha provindo, nunca mais a voltei a ver.
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