Pedro M. Lourenço
Memórias de um dia de inverno

Estava frio, muito frio. A chuva miudinha, molhada, incessante, fustigava todos os que se aventuravam nas ruas cinzentas da cidade. Hoje, tal como havia acontecido nas últimas semanas, o tempo parecia querer mimetizar o seu estado de espírito deplorável. Cinzento, cinzento, CINZENTO! Enquanto descia aquela ruela íngreme, em direcção a mais uma praça da cidade, os paralelepípedos escuros de basalto pareciam reflectir o seu olhar vago, cabisbaixo, e enquanto pensava ideias negras e pensamentos nefastos corriam diante de si.
As pequenas gotas que se desfaziam contra o seu rosto pareciam pequenos sinais de trânsito, anúncios de néon que o lembravam que ainda estava vivo. Vivo. Será que se pode chamar vida ao arrastar sem sentido que compunha hoje os seus dias? Sem desviar o olhar do chão, atravessou a rua, incapaz de não pensar, apenas por um momento, que o eléctrico poderia não parar, acabando assim de uma vez por todas com aquela existência miserável a que estava diminuído.
Cada dia, cada hora, cada minuto eram passados numa busca incessante por algo que sabia não poder alcançar, procurando uma luz no fundo de um túnel que sabia não ter fim. Abandonado, perdido no meio de um nada que lhe parecia ser tudo, ele vagueava, deambulante, pelos infinitos meandros da sua mente depressiva, procurando respostas para perguntas que desconhecia. O mundo era demasiado complicado, a vida parecia lentamente tornar-se num complexo novelo de processos kafkianos, sem que a ponta desse nó Górdio mostrasse sinais de existir. Como compreender, como perceber as intenções dos que o rodeavam envoltos nas suas próprias nuvens de caos e impossibilidades. Horas havia em que o mundo parecia juntar-se numa infindável conspiração. Cada pessoa, cada cérebro, cada molécula parecia conspirar contra ele, escondendo risadas frias por trás das suas costas, planeando à distância cada detalhe macabro daquela tortura atroz.
O seu universo parecia composto por milhares de mãos, cada uma munida de poderosas garras, que o puxavam cada uma numa direcção diferente. No seu âmago ele sentia que pouco a pouco elas conseguiam o seu objectivo. Ele sentia-se fraco, incapaz de se manter uno por muito mais tempo. Em breve o Universo conseguira o seu propósito e os seus pequenos pedaços disformes espalhar-se-iam, inertes e sem sentido, sem uma força motriz que os unisse num só indivíduo. Demasiadas forças, demasiadas questões, demasiados enigmas impediam-no de ver a verdade. Como nuvens de nevoeiro denso, pareciam esconder de si não só os perigos que o rodeavam mas também um mundo inteiro de tesouros e maravilhas que sempre buscara sem encontrar.
Como compreender a verdade? Como desmascarar as máscaras ocultas que o perseguiam? Cada intenção, cada momento, pareciam ter infinitos significados possíveis. Numa espiral de complexidade que o absorvia e o afogava na mágoa ardente da sua depressão. Um olhar, um sorriso, uma palavra, nenhum deles parecia ser suficiente. Cada um escondendo algo, cada um enterrando mais um pouco a faca aguçada que lhe penetrava as entranhas como um castigo divino de um deus terrível e todo-poderoso.
As vendas da razão queriam toldar-lhe a visão clara de uma realidade simples. Incapaz de enxergar por trás da cortina de fumo da sua mente, ele deixava o mundo passar-lhe à frente sem ao menos esticar a mão para agarrar a maçã que misericordiosamente abanavam em frente do rosto.
Então por fim acabado, desprezado, perdido sem esperança de salvamento, ele saltou. Mergulhou profundamente no ar frio de mais um dia sem destino e abraçou em pleno os tentáculos negros da morte que se espraiavam sobre o cimento frio e desumano do local que escolhera para se libertar. Por fim morreu. O seu corpo destruído pela queda feliz que tanto tempo demorou a concretizar. O seu espírito livre por fim do sofrimento de uma vida não vivida. Desapareceu silenciosamente, terminou a sua existência súbita como um meteoro brilhante na atmosfera límpida de uma noite de Verão. Nos restos da sua carcaça ensanguentada, incrédulos, eles encontraram os vestígios de um sorriso. Por fim encontrara a resposta para todos os enigmas que o afligiam. E então sorrira…
Pedro M. Lourenço in "À sombra de uma estrela intermitente"