Pedro M. Lourenço
O maçarico Sarapico

O meu nome é Sarapico e sou um maçarico. A minha história começou, como a de tantos outros maçaricos, num campo de feno verdejante de uma terra fria e húmida chamada Holanda. Um dia, senti que era a minha hora e comecei a bicar o meu ovo até o partir. Foi assim que eu nasci. Mal abri os olhos vi logo o longo bico alaranjado do meu pai e por trás os seus olhos ternos.
O meu pai acolheu-me sobre as suas asas e cobriu-me com o calor do seu corpo até a minha penugem secar. Ainda o dia não tinha dado lugar à noite e já eu tinha encontrado forças para me suster em cima das minhas pequenas patas. Saí do ninho e comecei a procurar a minha própria comida. Comia pequenas moscas e aranhas, mas não pensem que estava sozinho. O meu pai andava sempre por perto, pronto a defender-me de todos os perigos e a proteger-me da chuva e do frio.
Tive a sorte de crescer num prado cheio de flores de muitas cores onde as mosquinhas eram muitas e gordas. Assim, depressa cresci. Quando tinha doze dias, estava a acabar de comer o almoço quando o meu pai gritou: “Sarapico, foge. Depressa!” Comecei a correr e apenas vi o meu pai voar sobre mim como uma flecha a gritar “uítu, uítu, uítu” em alarme. O agricultor estava a ceifar o feno com um enorme tractor cheio de lâminas, só lhe escapei por um triz saltando para uma vala.
Saí da vala todo molhado e o meu pai aqueceu-me muito tempo até secar toda a minha penugem. Foi então que me contou por que razão eu não tinha mãe nem irmãos como os outros maçaricos. A minha mãe morrera a defender o ninho de um arminho, um bicharoco comilão de focinho comprido que gosta de comer ovos e aves bebés. Apesar da coragem dela, o arminho conseguiu roubar os ovos dos meus irmãos. Só fiquei eu e o meu pai.
Ao longo das semanas seguintes cresci até ficar do tamanho do meu pai e aprendi a voar. Agora já sabia escapar aos animais que me tentavam comer, chegara a hora de ficar por minha conta. Mas antes de partir, o meu pai ensinou-me tudo aquilo que eu precisava de saber para conseguir chegar à terra distante onde os maçaricos passam o inverno, e onde eu o voltaria a encontrar.
Os maçaricos vão passar o inverno a África, onde não faz frio e é mais fácil encontrar comida. É nossa tradição que os jovens viajem sozinhos, sem ajuda dos seus pais. Seguimos o nosso instinto e o saber que os pais nos passam antes de partirem. Um dia vi o sol a pôr-se e soube que chegara a hora. Parti rumo ao sul.
O meu primeiro voo foi curto. Parei junto às margens de um grande lago onde outros maçaricos comiam com apetite minhocas gordas. Era preciso enterrar o bico na lama para as apanhar, mas eram uma delícia! Passei três dias a comer minhocas para ganhar forças e depois voltei a voar para sul.
Desta vez voei a noite inteira. Só parei numa pequena baía junto ao mar, numa terra chamada França. Havia ali muitos maçaricos como eu e outras aves mais pequenas que também tinham bicos e patas compridas como nós. Aqui as minhocas eram salgadas, ainda sabiam melhor.
Apesar da comida ser boa, não gostei daquele local. O meu pai tinha-me ensinado que o terreno aberto é sempre mais seguro e esta baía era pequena e rodeada de grandes sebes e árvores, não se consegui ver o que havia por trás da vegetação. Ao amanhecer do segundo dia houve uma grande comoção entre as aves. Um falcão saiu de trás da sebe e voou como uma seta até apanhar com as garras uma ave de patas vermelhas. O meu pai tinha razão!
Logo que me senti com forças deixei aquele local. Desta vez voei um dia e uma noite inteiros e só parei quando vi no solo enormes bandos de maçaricos nuns lagos rodeados de vegetação rasteira. Depressa aprendi que estava no sul de Espanha, a última paragem antes do longo voo que me levaria até ao meu destino e até perto do meu pai. Aqui a paparoca era mais uma vez boa, comíamos pequenas larvas vermelhas até rebentar.
Por ali passei duas semanas a comer e a descansar. Os maçaricos mais velhos que ali estavam explicaram aos jovens que o voo seria longo e não haveriam locais onde parar até ao nosso destino final. Eu estava ansioso por embarcar nessa grande aventura, mas também sentia algum medo. Será que ia conseguir voar tanto tempo sem parar? Um dia os maçaricos começaram todos a levantar voo. Formámos um enorme bando, demos algumas voltas no ar até encontrar o rumo certo e depois partimos.
Foi um voo longo e cansativo. Ao longo de três dias e três noites atravessamos o mar e depois o deserto. Passámos sobre montanhas tão altas que pareciam tocar o céu e vimos o mágico nascer do Sol do deserto que pinta as areias infinitas em tons de vermelho vivo. Vimos oásis, pequenas safiras azuis no deserto amarelo, e avistamos as caravanas de camelos dos homens do deserto.
O deserto acabou e voltámos a ver o verde das árvores e o azul dos rios e dos lagos. Voámos ainda mais algum tempo até chegar a uma vasta região alagadiça junto a um grande rio. Estávamos na Guiné-Bissau, onde a terra é vermelha, as árvores são frondosas, e as pessoas têm a pele escura e vivem em cabanas com telhados de colmo. Era ali que eu esperava reencontrar o meu pai.
Aqui os maçaricos juntavam-se em enormes bandos nos campos de arroz. Comíamos as sementes do arroz, uma comida que a mim nunca me pareceu tão saborosa como aquelas minhocas gordas e salgadas que tinha provado antes. Passei os primeiros dias nuns campos próximos de uma grande ponte por onde os homens passavam de bicicleta e em camiões tão carregados que mais pareciam montanhas com rodas. Mas eu queria rever o meu pai e depressa procurei outros poisos.
Ao fim de duas semanas, a voar entre diferentes campos de arroz, ouvi alguns maçaricos dizerem que os maiores bandos se estavam a juntar nos campos perto de uma grande cidade. Ali o arroz tinha sido colhido há poucos dias e muitas sementes tinham caído ao chão, era um verdadeiro banquete. Juntei um pequeno grupo, formamos um bando e voamos sempre na direcção onde víamos mais homens. Decerto que assim iríamos encontrar a grande cidade.
Não demoramos muito a avistar a cidade, um sem fim de casas, estradas e pessoas. Que estranhos animais devem ser os homens para gostarem de viver assim, fechados em tocas apinhadas de gente. A cidade cheirava mal devido ao lixo e ao fumo das fogueiras e dos motores, mas foi de lá que avistámos ao longe algo que de início parecia mais uma nuvem de fumo, mas que depois percebemos ser um imenso bando de maçaricos.
De ânimos redobrados, voamos em direcção ao bando que entretanto pousara numa vasta lagoa entre os campos de arroz. Estavam ali milhares de aves, mas mal cheguei vi logo aquele que mais queria encontrar: o meu pai. Cumprimentámo-nos efusivamente à maneira dos maçaricos, esvoaçando e piando entre saltos e pequenos voos. Quando finalmente pousámos para conversar o meu pai olhou-me longamente e disse: “Bem-vindo a África filho, nunca duvidei por um segundo que ias conseguir. A tua mãe estaria tão orgulhosa se estivesse aqui para te ver!”