Pedro M. Lourenço
O Espelho partido

A noite era ainda uma incerteza que se insinuava por entre os últimos raios de Sol. Uma miríade de cores. Tonalidades que iam desde o rosa ao salmão, desde o castanho ao púrpura, pintavam o horizonte de luz numa festiva despedida do dia que chegava ao fim. Absorto nos seus próprios pensamentos, perdido entre as complexas equações que procurava resolver entre a casa e o trabalho, todo esse espectáculo celeste lhe passava ao lado, como uma prenda divina que simplesmente escolhera rejeitar. Alienado da multitude de cores que o envolvia, o seu olhar seguia atentamente os desenhos azuis e brancos das pedras da calçada quando algo diferente o distraiu. Ali no chão, abandonado e desprovido de sentido, estava um espelho, quebrado e multifacetado, multiplicado em inúmeros reflexos de uma mesma realidade. Olhou para o espelho e viu-se.
Cada pedaço de vidro reflectia um eu diferente, apesar de todos reflectirem o mesmo eu. Os mesmos olhos castanhos com pretensões a verdes, o mesmo nariz torto, as mesmas sobrancelhas bastas e farfalhudas, o mesmo cabelo despenteado. A mesma face perscrutante em todos eles, mas nenhum reflexo era igual ao outro. Ténues diferenças, pequenos detalhes, cada um era distinguível pela sua identidade única que se perdia na unidade do todo. Que bela metáfora para a vida, essa moeda de incontáveis faces, tantas quantas as máscaras que vamos usando ao longo dos dias. Em cada dia acorda uma pessoa, mas nunca exactamente a mesma pessoa da véspera, que depois ao longo do dia vai recobrindo o rosto com as várias máscaras que apresenta ao mundo. Elas são tantas, diferentes e enigmáticas, que quando ao fim do dia se olha ao espelho e remove cada um dos seus disfarces descobre que já não é capaz de encontrar a pessoa que lá estava por baixo, sob o peso das criações inconscientes de um cérebro irrequieto. Perdido entre as faces que apresenta ao mundo, deixou de saber quem era, resta-lhe assim uma alternativa, terá de se reinventar, reconstruir o espelho a partir dos cacos mesmo sabendo que o resultado final não será igual ao espelho original. Talvez o conjunto das partes possa aspirar a tornar-se maior que a unidade que antes formaram.
Deixou o espelho lá no chão, quieto e sem vida, mas pronto a acordar a mente adormecida do próximo transeunte incauto que lhe saia ao caminho. Enquanto percorria os meandros da sua mente, o crepúsculo deu lugar à noite e as estrelas tomaram o seu lugar de realce num céu reinado pela Lua.
Pedro M. Lourenço in "À Sombra de Uma Estrela Intermitente"